‘É possível extrair diretamente da Constituição essa ordem de ‘fique em casa”, diz Ayres Britto

O Globo - Surgem país afora vídeos e manifestações de pessoas que não estão nada dispostas a cumprir com decretos de estados e municípios que restringem a circulação para conter a pandemia do novo coronavírus, muitos sob alegação de que os decretos não podem se sobrepor à liberdades individuais expressas na Constituição. Mas juristas do país discordam que os decretos contrariem a Carta Magna e esclarecem: numa pandemia, vale o que protege a saúde.
— É possível extrair da Constituição diretamente essa ordem de ‘fique em casa’. Sobretudo no artigo 196, que estabelece a saúde como direito de todos e dever de União, estados e municípios. É um direito a ser garantido mediante a adoção de políticas sociais e econômicas que se voltem ao combate da doença, para viabilizar o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde pública. Isto está escrito com todas as letras — afirma o ex-Ministro do STF, Carlos Ayres Britto.
O ex-Ministro defende que garantir o cumprimento do isolamento é a única maneira que o Estado tem para cumprir seu dever de assegurar saúde com eficiência, já que não existem remédios ou vacina para o vírus. O princípio da eficiência da administração também está na Constituição.
— Não há outro modo eficiente de administrar a crise senão pela política de quarentena. Há sustentáculos para essa política pública a partir da Constituição brasileira? Há. E legitimam, portanto, essas políticas que vem sendo adotadas, não só no Brasil.
Para o Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP e professor da Fundação Getúlio Vargas, Roberto Dias, é importante também esclarecer que, nesse caso, o Governo Federal não manda mais do que o estadual.
— Numa federação, a norma federal não é superior à estadual ou municipal.  O que existe é uma repartição de competências. E a saúde, em especial, é considerada competência tanto do Governo Federal quanto de estados e municípios. Todos podem tomar medidas executivas para cuidar da saúde da população — afirma.
Entre o direito individual de ir e vir e a proteção da saúde da população, numa pandemia, a balança pende para o segundo.
A jurisprudência do Supremo, a partir dos anos 2000, tem sido de privilegiar o direito a saúde, relembram os especialistas. Em 24 de março, por exemplo, o Ministro do STF Marco Aurélio Mello determinou que a medida provisório 926 de Jair Bolsonaro, em resposta a restrições impostas por governadores, não poderia afetar “a tomada de providências” dos estados em relação ao novo coronavírus.
—  Em caso de conflito entre as leis, como o governo federal pregando flexibilização e estados reforçando isolamento, é muito provável que o STF vá dizer: o que está protegendo a saúde? Nesse momento, de acordo com os organismos internacionais e o próprio Ministério da Saúde, o isolamento protege a saúde. Portanto atos contrários a ele são inconstitucionais – completa Dias.
Na hora de criar leis, embora o poder de criar normas gerais esteja nas mão da União, estados e municípios também podem detalhar estas normas, criando regras mais específicas segundo seus interesses locais. Mas quais os limites para a atuação de estados e municípios? E quando suas restrições limitam outros direitos fundamentais, como a livre circulação?
—  A própria lei do coronavírus dá autoridade para que os entes estaduais e municipais tomem medidas específicas para conter a pandemia. Mas coloca critérios também, de duração, fundamento científico, respeito à dignidade das pessoas. A limitação de direitos não pode ser arbitrária, tem que fazer sentido e ser tomada com a finalidade clara de evitar a propagação da pandemia —  explica o professor de Direito Constitucional da FGV em SP, Rubens Glezer. —  A liberdade de ir e vir está na Constituição, mas ela é regulada. A restrição pode acontecer, com motivo legítimo.
Mas quem não respeitar as leis, insistindo em frequentar parques, por exemplo, pode e deve ser responsabilizado.
— Os municípios não inventaram agora que é crime frequentar parques. Existe um crime no Código Penal, artigo 268, que é o de infringir determinações das autoridades públicas para evitar a propagação de doença contagiosa. Esse é o crime. E quem fizer isso pode, sim, ser preso em flagrante — alerta.
O professor de Direito Constitucional da PUC em São Paulo, Marcelo Figueiredo, relembra que epidemias de doenças infecto-contagiosas são exemplos clássicos no Direito sobre situações em que direitos podem ser temporariamente limitados, como faz o decreto que estabeleceu quarentena no estado de São Paulo.
— Não há outra maneira de combater. O fundamento da restrição é a própria epidemia. E os países que não cumprirem com as medidas podem, inclusive, ser responsabilizados no futuro – conclui.

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