Edgar Moreno: Uma frase crônica

Por Edgar Moreno

COSTA FILHO, João Batista da que também representa o heterônimo Edgar Moreno.

Naquela manhã Astrogildo acordara com uma frase na cabeça. viera-lhe ao amanhecer, no cantar madrugal do galo. Isso, porém, não lhe pareceu nada demais, apenas uma dessas imagens surreais que nos chegam, entre o sono, o sonho e a aurora. O problema, todavia, é que aquelas palavras não lhe saíam da lembrança. Já tinha tentado esquecê-las e o conseguiu apenas por um quarto de hora.

Já levantado e desperto, tentou ocupar a mente com o banho frio, com a preparação do café, com os “bons dias!” na padaria. Quando voltou, porém, já estava novamente com a maldita frase na cabeça: “Só mesmo andando, sentindo o cheiro das ruas...”

Era ainda manhã e já o preocupava o fato de ele ficar o dia todo pensando aquilo. Tinha que tomar uma providência. Quando cuidou já estava em frente à sua velha Remington a datilografar: tec! tec! tec! Mas tudo que lhe saiu, já sabia de cor. Arrependeu-se da sua escrivaninha. Quis destruir o texto. Não conseguiu. Sem saída, concluiu-o, fechou as aspas e o assinou com “Autor Desconhecido”. Pronto! Agora com a frase trasladada a um papel, quem sabe poderia seguir em paz. E foi o que se deu. Deixou seu birô, passou pelo reposteiro de cetim e já foi indo completamente curado à mesa, tomou feliz o seu café da manhã, sintonizou o rádio no seu programa favorito e até lembrou seu tempo de juventude. Viajou no ontem de sua pequena Bacabal...

Quando deu por si estava todo arrumado, camisa engomada subposta ao cinto, sapatos muito bem engraxados e um cajado de jacarandá na mão. Ia sair e não sabia bem aonde. Na primeira esquina teve que pular uma poça de lama. Sorriu sério. Mais à frente a buraqueira alargou-se, levando o idoso a beirar o capim da rua, a topar na calçada e a quase dar com a cara no chão. Equilibrou-se, mas não se livrou da espirrada de lama de um carro. Na faixa de pedestres, não teve preferência; semáforo, só viu para veículos; no banco, desistiu da longa fila de prioridades; noutra rua, quase se irritou com o carrinho de cachorro-quente obstruindo a faixa de pedestres e a própria viatura da polícia. De rua e rua, teve que enxotar vários cachorros de seu caminho. Elevou as vistas à parede da loja e riu da ortografia. Atentou a um programa de TV e envergonhou-se. Convidaram-no a ir ver as ruas do Pantanal, do Satuba, da Pedro Brito e das Vilas tantas. Não se entusiasmou. Entristeceu-se. Cansado do passeio, quis pegar um ônibus, mas não havia ônibus algum. Chamou um mototaxista. A corrida era cara. Decidiu ligar ao filho. Quase se arrependeu pelos solavancos do carro.


Já em casa correu à Remington e pôde reler e compreender o que até então lhe era apenas um sonho e que agora se tornara uma triste realidade: “Só mesmo andando, sentindo o cheiro das ruas, pulando as poças de lama, lendo a ortografia das paredes, enxotando um cachorro e outro, é que, de fato, podemos conhecer a nossa cidade”.

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