

Bolsonaro, já deixou claro, não aceita ser limitado por ninguém e tem um entendimento muito raso do que seja governar. Daí as transgressões em cadeia. Prefere jogar para a plateia, como cortina de fumaça de suas notórias inabilidades. Ante a peste da Covid-19, preferiu escolhas irresponsáveis, menosprezou a devastação da doença, insuflou a desobediência ao isolamento sugerido pelos médicos, pelas organizações mundiais de saúde e por seu próprio ministro. Não gostou, quando contrariado. Demitiu. Deu show de incompetência, sabotando os esforços para conter a pandemia e, quando informado de estar perdendo base de apoio pelas sandices, procurou mais uma vez a zona de conforto dos conflitos e provocações. É só aí que sabe atuar. Com uma retórica belicista e horizonte mental limitado, não vai além de ideias como a de proibir radares de trânsito e dispensar cadeirinhas na condução de crianças nos carros. Sujeito primitivo no comando do País, não consegue também entender que são nulas as possibilidades de aventuras autoritárias. Na encenação do protesto do domingo, em pleno dia do Exército, numa simbologia que buscava ingenuamente passar o recado de ter o apoio da caserna a seus arroubos, rompeu uma barreira que mesmo os generais mais graduados ficaram constrangidos de presenciar. Estava ali o próprio mandatário conduzindo um ato que, na prática, desqualificava o próprio poder militar — cuja missão precípua é a de zelar pela ordem. Bolsonaro logrou fazer do coração do comando fardado um palanque político, numa ousadia que nem mesmo João Goulart, no seu célebre discurso da Central do Brasil (ao lado do antigo quartel do Exército), superou em provocações do gênero. As reações vieram em série. Mesmo das próprias forças militares. Dos ministros do STF aos presidentes da Câmara e do Senado, diversas instituições civis, como a OAB, do Ministério da Defesa, que soltou nota posicionando as Forças Armadas “sempre obedientes à Constituição”, até o procurador-geral da República, Augusto Aras, que encaminhou pedido de abertura de inquérito para apurar as responsabilidades na organização das manifestações, todos os setores se posicionaram em franca discordância ao ocorrido. Os quatro generais ministros da cúpula do Planalto pediram ao chefe da Nação uma reunião de emergência para tratar da crise e pedir moderação. Bolsonaro havia conseguido, dessa vez, a proeza da unanimidade contrária a ele. Aquiesceu e, no dia seguinte, como de costume, buscou contornar. Depois de avalizar as distopias com a presença e liderança do ato, se fez de rogado, desentendido, e alegou tratar-se de uma simples mobilização pela volta ao trabalho. Faz pouco caso da inteligência alheia, talvez medindo-a pelo próprio metro. No momento seguinte ao protagonismo indevido, redes sociais foram tomadas pelas milícias digitais com ataques aos alvos preferenciais do presidente — de Maia a Alcolumbre, passando pelo Judiciário, ninguém escapou à habitual ladainha dos robôs, replicada pela minoria de fanáticos adoradores do “mito”. O processo é conhecido e manjado. O capitão candidata-se a caudilho tal qual tentou, lá atrás, o coronel venezuelano Hugo Chávez. Do mesmo modo, sem apreço algum pela democracia, Chávez foi procurando minar diariamente instituições. Criticava adversários, mídia, parlamentares, para depois consagrar o seu projeto de poder. No Palácio de Miraflores, cercou-se de militares — qualquer semelhança não é mera coincidência, ao menos não na mente perturbada do caudilho bananeiro — e diuturnamente estimulou a polarização, desancando Justiça, partidos e opositores ao regime. Prendeu, expropriou, destruiu um país inteiro. Nos discursos, o venezuelano dizia que, com ele, o povo estaria no poder. Que ele é o povo. Lembra de algo? Seguindo na mesmíssima trilha, Bolsonaro mostra-se previsível na tentativa de um populismo tropical barato. No domingo, antes mesmo da anarquia engendrada, rumou para um lanche com os três filhos mais velhos, um senador, um deputado federal e um vereador licenciado. Deixou-se fotografar comendo milho e ketchup, tendo como cenário de fundo um quadro de metralhadora AK-47. Mais tarde, já em casa, vestiu camiseta amarela, bermuda e chinelos. Aboletou-se numa cadeira e tratou de assistir às “denúncias” do encalacrado aliado, Roberto Jefferson, que, sem prova alguma, falava de um plano diabólico montado pelo deputado Rodrigo Maia para tirá-lo da Presidência. Cada cena milimetricamente filmada. A patética opereta entre os dois servia ao intento corriqueiro: acionar o gabinete do ódio para disparos em massa de posts, enxovalhando ainda mais a reputação do rival que comanda a Câmara. Novidade zero. O “mito” em pessoa, na sua ânsia blogueira de quem se pauta pela esgotosfera, tratou de publicar em suas redes sociais a fala do “denunciante”. Ao lado dela, lançava fotos sobre a carreata da vergonha que, ilegalmente, rompia a quarentena. Eis Bolsonaro em estado bruto. Agindo como moleque insensato. Desconfortante é enxergar a apatia nas instituições que, embora manifestem repúdio aos rugidos golpistas, ainda reagem brandamente ao lidar com as insolências do capitão. Na própria petição para investigar “fatos delituosos envolvendo atos contra a democracia representativa brasileira”, algumas falhas são anotadas. A começar pelo pedido de sigilo do processo — o que não cabe, segundo boa parte dos juristas, por se tratar de fato de interesse público. O episódio foi praticado à luz do dia, filmado e resta também apurar o que o presidente em pessoa estava fazendo por lá e como participou dos atos. Basta ouvir as gravações e imagens para entender. A generalidade da investigação não leva a bom termo. Antes mesmo de toda essa balbúrdia, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, foi indagado sobre como estavam indo as coisas. Ao que respondeu: “tudo sob controle, só não se sabe de quem”. Dá para entender agora do que ele estava falando.