Edgar Moreno: Dona Feia

Edgar Moreno
COSTA FILHO, João Batista da que também representa o heterônimo Edgar Moreno.

A primeira vez que a vi ela me pareceu à mulher mais feia do mundo. Não apenas pelo aspecto paupérrimo e desleixado, evidente que estava no modo de seus trajes, mas principalmente em toda sua maneira-vítima do existir. Tudo nela parecia mais grave e gritante que em outras mulheres feias. Era uma musa às avessas. A boca, nada singela e longe do sorriso de Monalisa, carregava uma arcada falha e podre; no rosto, jambo, desenhava-se um tom choroso e gripal de amargura mexida. Mesmo quando tentava rir com minhas palavras de esperança, o desgosto e a fome recendiam no relato de sua desgraçada sina. O corpo, nem obeso como o da explodida Dona Redonda, nem esquelético como o da drogada Pedra Noventa, acudia em seus trinta e tantos anos alguns quilos extra de banha na estatura baixa, grossa e sofrida.
Não, não se trata de uma drogada. Em suas palavras, a droga parece ser a própria vida que ela leva. Trata-se, pois, de uma cidadã sem casa, sem emprego, sem marido, sem amor, sem leitura, sem oportunidades; é uma vítima do sistema com quatro filhos pequenos para criar. Quatro filhos não, três, pois um deles já não existe mais desde o ano passado. Morreu de dor, no leito do hospital, vítima duma infecção urinária. Ou vítima do sistema? Era isso que ela se me lamentava aos prantos de mãe pobre e desvalida, que nada pôde fazer pelo filhinho.
Não sei precisamente onde mora Dona Feia, mas pela trajetória diária que faz com um ou outro filho pelas ruas, leva a crer que se soque em algum casebre sem número da Rua da Amargura, na zona norte-periférica da cidade. Seu nome? Não importa. O que tem a ver isso com sua pobreza? Chamemo-la apenas de Dona Feia, uma viva vítima da nossa desigual sociedade; uma mulher, uma mãe, uma cidadã, sem casa, sem emprego, sem marido, sem dentes, sem beleza aparente...
Mas toda essa feiura se resolveria com um simples banho de loja e odontologia. O fato é que tal luxo nem lhe passa pela cabeça diante da faminta necessidade dum prato de comida aos filhos. E quem haveria de fazer-lhe tal caridade, se para ela uma sacolinha de carvão e um bocado de farinha já é uma bondosa e agradecida oferta?
Pode até parecer ficção, mas o milagre dos dentes tem bom rumo de acontecer. Dona feia já ganhou o serviço duma doutora da cidade, segundo o que ela própria me disse por esses dias, ao bater em minha porta para ver ajuda ao seu almoço de domingo. E me disse também: continua pagando 80 reais de aluguel, contando para isso com o Bolsa Família dos filhos e “bicos” de lavagens baratas.
Já tinha tido de conversar com ela, mas achei pertinente voltar ao caso do Programam “Minha casa, minha vida”. E ela, esticando o beiço roxo e ressecado, disse que não entendia por que, mas pessoas que não têm necessidade foram sorteadas, enquanto ela, sem casa, sem emprego, sem marido e carregada de filhos não o foi até então. Teve que refazer todo o processo. Refez. Reascendeu-lhe a esperança.
Torçamos, pois, para que sua nova inscrição lhe venha realizar o sonho da casa própria. Que seus prometidos dentes possam lhe trazer de volta o sorriso para o corpo, para a alma e para a vida. Certamente que, de dentes novos e casa nova, Dona Feia comece a embonitar-se para uma nova vida.

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem